Minha Primeira Culpa.

Havia uma carta esquecida na gaveta que ela estava limpando. Pegou-a, abriu o envelope amarelado e se preparou para ler algo que estava dentro de si. Chega a ser absurdo pensar que todos os seres humanos gostam de reviver o que já passou. Sou assim também, infelizmente. Mas voltemos aos fatos. Quando ela abriu a carta e sentiu a textura espessa da folha do papel, não pensou duas vezes e aproximou a carta ao seu rosto e a cheirou de forma a respirar todas as lembranças - pude ver as letras entrando pelo seu nariz. Ficou entorpecida, dobrou a folha de papel, colocou no envelope e a devolveu a gaveta. Não precisava ler, sabia décor cada palavra, lembrava do traçado das letras e da cor da caneta, precisava apenas respirar.
Tive vontade de perguntar sobre do que se tratava a carta, mas como eu era uma criança ingênua encaixada dentro do corpo da minha idade eu não seria ouvida. Era como se eu não estivesse ali, como se eu não fosse testemunha dos seus gestos e das suas expressões. Admito que eu não havia entendido nada, mas eu quis repetir aquela cena e, mais do que nunca, desejei ter uma carta em minha gaveta. Foi o que fiz. Eu mesmo fiz meu envelope, “escrevi” a minha carta e a guardei na minha gaveta. Deixei-a guardada durante seis dias – mais tempo era demais para minha infantil impaciência – para que ela também ficasse amarelada. Não ficou. Abri a gaveta fingindo limpá-la, com admiração e cuidado peguei o envelope quase branco, toquei na folha rabiscada, a aproximei do meu rosto e a cheirei. Não senti nada. Foi a minha maior decepção durante dias.
Hoje lembrando – porque como eu disse, também gosto de reviver o passado – entendo o porquê que não encontrei sentido naquela carta vazia daquela gaveta vazia. Primeiro porque não havia nada escrito na carta – eu não sabia escrever ainda -; segundo porque não se tratava de lembranças e, por último, porque não era uma carta de amor. Sim, a carta dela era uma carta de amor. Foi fácil saber disso, estava evidente naquela cena, estampado em cada movimento. Não, na verdade na época eu não sabia interpretar esse tipo de coisa, não sabia interpretar nada, tampouco sabia ler. Roubei a carta para mim, claro que a falta dela foi notada, desesperadamente notada, sentida, chorada... Eu não ia devolvê-la até conseguir lê-la. Ela voltou para a gaveta três anos depois, borrada de lágrimas inventadas e amassadas por mãos incrédulas. Voltou só para a gaveta, pois a falta do amor escrito e do oxigênio das letras daquela folha tirou a vida da destinatária.



Cássia Fernandes.